Foi quando me apercebi da expressão, onde esbarrei através de reflexos de luz em movimento e gotas sonoras que escorriam pelo vidro, atravessando o olhar e a cara de espanto, no carro que parado ao lado me olhava fixamente e se esquecera do espaço frustante onde estava graças á minha, que não imaginava, mas concerteza motivo de maior que o meu, que tive consciência de estar, outra vez, a falar sózinho.
Ainda que pudesse, não me atrevi fazer uma tentativa de fingir que era o telemóvel o responsável pelas inúmeras e indiscritíveis expressões que faziam o meu semblante variar entre um estado quase contemplativo, calmo, tolerante e compreensivo, a um evidente estado de espírito em ebolição que se traduzia num sem fim de frases a que o meu inexistente interlocutor não teria hipótese de interromper com intenção óbvia de se justificar.
Reacção incontrolável que me invade a estas horas e nesta situação, infelizmente frequente. Aí vou eu, parado no trânsito, não de regresso a casa, mas mais uma vez no papel que provoca em mim uma vontade insana de abandonar este trabalho que tanto gosto mas que nestes momentos me fazem odiar, literalmente, estes fim de dia.
Sinto um alívio ao ver aproximar-se a saída que me leva no sentido oposto do conforto que ansiava, mas em compensação, poderia agora pressionar o pedal do acelarador e roubar á ansiedade alguns momentos. A ilusão terapêutica que me proporciona a sensação quase idêntica ás imagens de um filme que me abstrai dos pensamentos, criando uma calma, ainda que breve, real.
Ás apalpadelas, porque a luz do interior resolve não funcionar de porta fechada e porque a chover torrencialmente procuro adivinhar, qual estudante de braille, a chave do apartamento onde vou fazer de polícia. Depois de alguns ais, umas centenas de gotas pesadas que entram pela porta aberta que me ensopam o lado esquerdo e outras expressões que me recuso aqui transcrever, encontro finalmente a correcta.
Meio molhado, enfio a chave e abro a porta. Surpreendido pelas luzes no interior, percebo os movimentos sonoros e inesperados que têm origem na sala e aí encontro o João, de gatas, a fazer o que normalmente me obriga berrar e exigir o cuidado que me parece evidente, mas quase sempre só a mim.
Senti uma paz invadir-me, hoje não preciso fazer o papel que tinha na expectativa e um sorriso surgiu. Depois de observar as restantes divisões voltei e elogiei o seu trabalho. Foi quando se levantou e me dirigiu o olhar que desapareceu aquele meu sorriso pacífico, substituido por uma sensação de preocupação e compaixão que a ausência de brilho me provocou.
Na tentativa de camuflar uma certeza evidente que trazia de volta expressões de personagens que há muito tinha perdido, associei em desespero áquela o cansaço e a fome. Afinal eram dez horas e provávelmente ainda não tinha jantado, como eu. Foi no caminho, depois de recusar o convite, aceitar algum dinheiro e boleia para casa, quando se sentiu confortável e, também, para contar a sua história que aqui resumo:

O João tem 42 anos, ficou orfão aos 16, sempre trabalhou a assentar chão, poderia ganhar muito bem, trabalho não falta, mas consome heroina há 20 anos, vive com e sustenta o sobrinho, esquizofrénico, de 26 anos, consumidor também de heroína há dez, numa casa nova num bairro social colado com as Amoreiras, a mobília é composta por dois colchões uns quantos cobertores, dúzias de velas e cotos que substituem os interruptores ainda novos nas paredes mas onde a energia não chega por falta de pagamento, baldes, latas e toda a espécie de recepientes onde acumula a água que não verte nas torneiras pelo mesmo motivo. Foi com uma vela na mão que me mostrou a sua casa, surpreendentemente asseada, cheio de orgulho com um sorriso feliz, que por momentos a minha presença lhe proporcionou e fez esquecer a sua miséria.

De regresso a casa, interrogava-me sobre o motivo que horas antes me deixou a falar sózinho e do qual agora não faço a menor ideia.

9 comentários:

Carla disse...

no vazio dos outros, por vezes conseguimos encontrar forças para acreditar que há pequenas coisas que preenchem os nossos dias, basta estarmos atentos às surpresas que a vida se encarrega de nos proporcionar
beijos

Anónimo disse...

Olá ZM, quantas vezes nós não valorizamos o que temos e só com a dor alheia nos sentimos uns verdadeiros sortudos.

Abraço e um beijo, gosto de te ver voltar.

O Árabe disse...

Drogas... talvez o maior flagelo do mundo moderno.:( Solidariedade... o maior conforto de todos os tempos. :) Boa semana, amigo!

Elsa disse...

zé,

que bom ler-te!
saber-te de sorriso, que tão bonito deixou o meu por encontrar o teu!
continuas a surpreender-me com a tua escrita! Gosto.
bjos e sorrisos

Ana Rita disse...

Gosto da tua maneira de escrever. =D É diferente.

Anónimo disse...

Gostava de fazer um blog exclusivamente dedicado a este Natal, conto com a sua presença num post que poderá enviar para trapezista@sapo.pt. Poderá tb convidar alguem q deseje.
Serão publicados a partir de 1 de Dezembro até dia 25 do mesmo mês.
Obrigada e Boas Festas.

KI

ivone disse...

acompanho sempre quase em silêncio o que por aqui deixas mas hoje não posso deixar em branco a minha passagem. li e reli o texto sobre o joão. da primeira leitura devorei é o termo certo. na segunda ficou_me acente um episódio da história de vida. posso só dizer_te que na primeira parte do texto a tinta corre no papel e com ela tu acompanhas cada letra que despejas na página. soberbo!

pzs disse...

...

Bom é chegar aqui e ler palavras vossas, já minhas, que me fazem voltar com um sorriso sincero.

Obrigado.
Muito obrigado!

zm

pzs disse...

Ivone,

Que o silêncio das tuas palavras não me roube a tua paixão por onde me passeio e emociono.

Por aqui nada é soberbo, só palavras que por vezes escorrem mas não dizem quem sou.

Sei lá e ainda bem!

Obrigado pelas tuas e pelo silêncio...